Matéria publicada no jornal Folha de São Paulo no caderno Mais, na página 8, do dia 18 de abril de 2010
Do outro lado do espelho
Indícios de patologias permeiam a vida e a obra do britânico Lewis Carroll, autor de “Alice no País das Maravilhas”
Moacyr Sciliar
Colunista da Folha
Charles Lutwidge Dodgson (1832-98), mais conhecido pelo pseudônimo de Lewis Carroll, faz parte da história da literatura, sobretudo graças ao monumental “Alice no País das Maravilhas”, que podemos considerar a obra precursora do realismo mágico e que inspirou obras similares, peças teatrais, filmes, o mais recente dirigido pelo original Tim Burton (que estréia no Brasil na sexta-feira).
Mas Dodgson também tem sido objeto de vários estudos médicos e psicológicos, baseados tanto em sua peculiar existência como em seu trabalho ficcional. De uma conservadora família anglicana, à qual não faltavam clérigos e militares, o jovem Dodgson, que as fotos mostram como um homem bonito, simpático, dedicou-se inicialmente à matemática, lecionando no famoso Christ Church College, de Oxford, cidade em que, a propósito, a sua memória é muito evocada.
Era um homem culto, gentil, mas não livre de problemas: como outro grande escritor, o seu contemporâneo, Machado de Assis, gaguejava, coisa que o mortificava e que rotulava como sua “hesitação”; o pássaro Dodô, que aparece no livro, traduziria a dificuldade que ele tinha em dizer seu sobrenome (“Do-Do-Dodgson”). Começou também a publicar e tornou-se razoavelmente conhecido, já usando o pseudônimo famoso.
Em 1856, um novo deão, Henry Liddell, tomou posse no Christ Church. Dodgson tornou-se amigo da família Liddell, sobretudo das três filhas, e sobretudo de Alice – que, segundo ele, não foi o modelo para a personagem do livro; de qualquer modo a história nasceu num passeio de barco com as garotas.
Ilustrado pelo grande sir John Tenniel, o livro se transformaria num sucesso retumbante, com uma continuação – “Through the Looking-Glass and What Alice Found There”, em geral traduzida como “Alice no País do Espelho”.
Mais ou menos na mesma época, Dodgson começou a se dedicar à fotografia, então em seus começos. Ele gostava de fotografar meninas, às vezes em poses sedutoras, e, nuns poucos casos comprovados, nuas. Daí nasceu a suspeita de pedofilia que durante décadas pesou sobre o escritor.
Vladimir Nabokov chegou a compará-lo a seu personagem Humbert Humbert, que, em “Lolita”, se apaixona por uma ninfeta. Havia um agravante: a Inglaterra vitoriana, uma sociedade moralmente muito repressiva, gerou casos de aberrações e até crimes sexuais, Jack, o Estripador, sendo disso um exemplo.
(Charles Lutwidge Dodgson – 1858 – Reprodução) – Fotografia de Alice Liddell realizada pelo escritor Lewis Carroll que aparece abaixo, em imagem de meados dos anos 1870
Reprodução
Proibição
No caso de Dodgson, há detalhes agravantes: a partir de 1863, o casal Liddell não mais permitiu que o professor visse as crianças. E, supostamente por causa de uma consciência culpada, ele nunca foi ordenado ministro da Igreja Anglicana, como era de se esperar com alguém que lecionava no Christ Church. Nisto contou com a aprovação do deão Liddell, que lhe permitiu continuar lecionando (também publicou livros de matemática, celebrizando-se pela criação de quebra-cabeças lógicos).
Os estudos modernos a respeito da controvérsia são, digamos, mais tolerantes. Dodgson certamente tinha dificuldades com mulheres adultas (no mínimo falta de interesse por elas). Mas daí a pedofilia vai um passo grande. Mesmo a suposta patologia vitoriana é posta em questão; parece que as fotos de crianças eram valorizadas como expressão da inocência infantil. E, nas fotos de Dodgson, as crianças parecem inteiramente à vontade, sem mostrar temor diante de um suposto assédio.
Um outro aspecto interessante, do ponto de vista médico, é a chamada síndrome “Alice no País das Maravilhas”. Reporta-se àquele episódio em que Alice cresce e encolhe, o que se traduz em macropsia e micropsia, a visão dos objetos subitamente aumentados ou diminuídos em tamanho, uma penosa sensação que pode ocorrer em casos de enxaqueca, problema que, como João Cabral de Melo Neto, Dodgson tinha.
Outros autores sugeriram que o escritor talvez sofresse de epilepsia do lobo temporal, que também pode dar esses sintomas. Dessa doença sofria Machado de Assis, e há disso evidências em sua obra. Por exemplo, a cena alucinatória em “Memórias Póstumas de Brás Cubas”, em que o protagonista, num delírio alucinatório, percorre os séculos transportado por um hipopótamo que, no final, “encolhe” e é apenas um gatinho.
Escritores não precisam ser necessariamente criaturas saudáveis. Mesmo porque conseguem, graças ao talento, transformar em fonte de inspiração as mazelas médicas e psicológicas que a eles, como outras pessoas, perturbam e atrapalham.
Moacyr Sciliar é médico e escritor, ganhador do 51º Prêmio Jabuti, nas categorias ficção e romance, por “Manual da Paixão Solitária” (Companhia das Letras).