• Para você, gostar de ler refere-se, especificamente, a Literatura?
Gostar de ler é gostar de escrever, de contar a sua historinha, essa coisa da “Professora maluquinha”. Tem ali uma porção de sugestões, mas eu não sei a fórmula, estou atrás dela. Acho que a sala de aula é um lugar sensacional para fazer o mesmo que a professora maluquinha: transformar a aula num programa do Sílvio Santos. Algumas coisas que conto ali inventei, mas outras aconteceram na minha vida, como a professora escrever no quadro-negro “quem achar a maçã, leva a maçã”; é verdade, a frase ficou lá escrita durante um mês. Minha sorte é que eu li (eu era do primeiro ano). No segundo dia, todos liam, mas ficava um tumulto e a diretora dizia: “que coisa maluca! Essa mulher está maluca”. A professora tinha dezesseis anos, era menina mesmo, muito bonita, usava batom, beijava o namorado no jardim, brincava de roda com a gente, era doida de pedra… Por tudo isso, mandaram ela embora do colégio.
• É instigante saber que você acha mais importante ler que estudar. Como é isso? Como você conceitua a leitura?
Na verdade é uma provocação estimulante: é evidente que estudar é importante, mas ninguém pode estudar sem ler. A preparação é mais importante. É como no basquete: saber quicar a bola sem olhar para o tablado ou para a cesta é mais importante do que ter dois metros de altura, ou seja, tem que ter os fundamentos, em qualquer esporte e na vida. Mas é só pra provocar, tanto que a Melhoramentos demorou uns cinco anos discutindo um cartaz em que eu dizia: “ler é mais importante do que estudar”, e eu tive que mudar para “estudar é importante, mas ler é mais importante” (risos). Só que essa frase não teve impacto e eu não fiz o cartaz. O redator deles dizia: “estudar é muito importante, mas ler também é”. Agora, as próprias professoras mudaram: “ler é mais importante do que tudo…”. elas radicalizaram, não é? Mas é verdade.
• Voltando ao gosto pela leitura, você disse que, em sua família, só alguns tiveram paixão de ler, como você. Então, o contexto familiar só pega para uns?
O contexto familiar facilita, ajuda, principalmente quando você almoça junto e conversa; quando o pai, pelo menos uma hora por dia, sabe como foram as coisas na escola, que jogo o filho viu, comenta o incêndio na favela, quer dizer, a família precisa conversar. Eu me lembro que era pequeno e fui uma vez almoçar na casa de uma família muito interessante da minha terra. Eles almoçavam juntos (o que eu não era um hábito lá em casa, onde a comida ficava no fogão, cada um se servia na hora em que chegava, não tinha a “hora do almoço”, que é muito recente na cultura na minha terra). Nesse dia, paz, mãe e crianças, enquanto almoçavam, discutiam o filme “Sempre no meu coração”. Todo mundo dava palpite sobre o que o pai dizia, conversavam, mudavam de assunto, “Ah, papai, você leu no jornal não sei o quê?”. Quando cheguei em casa, eu disse: “mamãe, quero almoçar na mesa pra gente conversar sobre a guerra” (eu sabia tudo da guerra e o meu avô conversava muito comigo sobre isso). E aí a gente começou a esperar papai pra almoçar e ele conversava com a gente, recortava coisas do jornal, etc. Mas gostar de ler só eu, bicho. Dos sete irmãos ninguém dormia agarrado com o livro, não.
• Tem um imponderável nessa história, não é?…
Tem alguma coisa de vocação…
• A escola pode fazer muito, mas…
Pois é, mas na sala de Dona Kátia, todo mundo lia. Lembro que nós éramos cinco meninos e a gente lia Júlio Ribeiro, procurava livro de sacanagem para ler junto, todo mundo já lia…
• Você acha que a televisão muda o referencial?
Estimula a curiosidade. Mas também pode ser prejudicial. O problema é a família “entregar” os filhos para a televisão porque é muito cômodo. A televisão está muito pouco interessada na pessoa, ela quer o consumo, e como tem aquela coisa mágica da TV entrar em sua casa a tendência é querer imitar o que está lá, como padrão.
• Mas até o livro não tem nem um pouco de marketing?
Não tem jeito, você tem que dançar conforme a música, não tem que ter saudade. Você mão pode descontextualizar o mundo, ele tem que ser assim mesmo. Se tem esse aparelho e essa velocidade de comunicação, você queria que fosse diferente? Não tem jeito, ué…
• Não tem volta…
É, não tem esse negócio de nostalgia, não. Muita gente diz: “você comercializa seu boneco”, mas Goya também pintava para o Rei, tinha estúdio de arte para fazer retrato de rico e sobreviver. “Cada terra com seu uso, cada roca com seu fuso…”
• Mas tem uma diferença: uma coisa é só comercializar e a outra é ter propostas.
Claro, é diferente, mas ao mesmo tempo, se você é um esquimó não pode se queixar da neve; se você é um sujeito do século 21 não pode se queixar do século XXI tem que ir em frente.
• Outra coisa, Ziraldo, porque se fala em crise de leitura, em morte do livro?
Não tem crise de leitura. Eu não conheço essa expressão. Morte do livro, sim. Acho, por exemplo, que o dicionário vai acabar. Eu tenho um porque gosto, é lindo, acho fantástico, gosto de tirar da estante, abrir, ficar lendo, tem todo um ritual que eu amo. Mas o Jô, por exemplo, jogou tudo fora porque ele tem uma facilidade incrível de mexer com o computador, pega o dicionário em cima da mesa, escolhe a palavra, digita lá: “capcioso e o computador dá a resposta na hora. E tem mais: um verbete de enciclopédia tem mais matéria que um dicionário inteiro, com foto, filme, etc. A Britânica está em disquete só. Outro dia, um cara estava me contando que procurou Kennedy e encontrou até foto do Kennedy menino. Além disso, a informação ocupa cada vez menos espaço nas casa das pessoas porque você pode acessá-la pela Internet. Nesse sentido, o livro de referência tende a acabar mesmo.
• E quanto ao livro de leitura?
Ah, não, porque é como acabar com o ato sexual. Não tem jeito, é uma relação importante, tátil, afetiva. Ler é como assistir a uma peça de teatro, ouvir uma canção, comer um doce. É uma coisa estimulante; você vê a beleza da frase, experimenta a virada da página. O autor pode tentar te enrolar, mas você abre o livro mais adiante e vê se o personagem vai morrer mesmo. Poema, também, você não via pegar na Internet ou em disquete. É por isso que não troco livro por nada. Aqui eu tenho tudo quanto é livro de informação, tem cem mil vinhetas? Na coleção da Tover (eu não tenho todos os livro), se você precisa de barco antigo, automóvel, cavalinhos, águia, símbolos, tudo isso tem lá… (Ziraldo pede para alguém: “pega aquela caixa vermelha, pesada, na estante lá dentro, com os disquetes”). Tudo isso que está ali (apontando para os livros, na estante) está aqui (mostrando um disquete), um programa com cem mil vinhetas, que você vai no mouse, clica e tira cópia do tamanho que quiser. Eu comprei, mas não vou usar. Gosto é de ficar folheando o livro pra ver outras vinhetas, sentir o cheiro do papel… Quando quero uma cópia, tiro xerox, que eu amo (risos).