Pedro Benjamim Garcia e Tania Dauster organizaram o livro “Teia de autores” (lançado em 2000 pela Autêntica Editora) após reunirem uma série de entrevistas com grandes autores nacionais de livros de temática infanto-juvenil, entre 1996 e 1997.
A entrevista que será postada hoje foi feita com a escritora Marina Colasanti. Personalidade de destaque entre as escritoras brasileiras da atualidade, Marina Colasanti nasceu na Eritréia, África. Aos dois anos de idade mudou-se para a Itália e aos 11 veio com a família para o Brasil, radicando-se no Rio de Janeiro. Estudou na Escola Nacional de Belas Artes (RJ), especializando-se em gravuras de metal, mas acabou se profissionalizando em jornalismo ingressando na imprensa em 1962, como redatora, ilustradora, colunista, etc.
Atraída pela literatura, fez várias traduções (Moravia, Kozinsky, Papini, etc). Sua carreira de escritora teve início em 1978, com a obra memorialista “Eu, sozinha”. Seguem-se as crônicas (misto de ficção) de “Nada na manga” (1947) e os mini-contos de “Zooilógico”(1975). Em 1978, publicou “A morada do ser” e, em seguida, os ensaios de “A nova mulher” (1980) e os de “Mulher, daqui pra frente” (1991) – livros que mantém um diálogo com os problemas vividos pela mulher.
Publicou para crianças e jovens, entre outros, “Uma idéia toda azul” (contos de fadas, 1979); “Doze reis e a moça no labirinto do vento” (contos de fadas, 1982); “A menina do arco-íris” (1984); “O lobo e o carneiro no sonho da menina” (1985); “O menino que achou uma estrela” (1988); “Ofélia e a ovelha” (1989); “A mão na massa” (1990); “Ana Z, aonde vai você” (1993); “Um amor sem palavras” (1995); “O homem que não parava de crescer’ (1995).
“Leitura é uma coisa e alfabetização é outra. No Brasil confundem-se as duas. Acham que resolvendo o problema da alfabetização estão solucionando o da leitura”.
- Como você descreveria sua relação com a leitura?
Primeiramente é preciso situar-me em um universo de leitura. Era um universo europeu, uma família de leitores. Não tenho memória anterior à leitura.
Fui alfabetizada muito cedo, pois acompanhei meu irmão mais velho, Arduíno Colasanti, durante sua alfabetização com uma professora particular. Na casa dela, havia uma mesa redonda antiga, toda marcada de tinta, pois seus irmão era desenhista, aliás, hoje sei que era um péssimo desenhista. Nas paredes, estavam pintados bichinhos, um verdadeiro e estranho universo de magia e encantamento. As crianças aprendiam a escrever primeiro desenhando círculos, depois, quadrados. Usávamos papel quadriculado. Percebi, de estalo, que estávamos aprendendo a desenhar. O processo era interessantíssimo. As letras eram desenhos e isso ela procurava mostrar com exercícios. Os bichos que nos eram apresentados tinham um desenho nas iniciais de seus nomes (semelhante ao processo de Comenius). Uma maravilha.
Eu não queria sair dali. Toda vez que tinha de ir embora, chorava copiosamente. E por insistir tanto em ficar a professora, com pena, concordou. Havia umas almofadas onde eu me sentava. Assim, acabei sendo alfabetizada ao mesmo tempo que meu irmão. Isso era ainda na Itália. Era como se fosse hoje…
A escola entrou na minha vida como um prazer, um fascínio. Achava ótimas as brincadeiras que as crianças faziam.
Depois, devido à guerra, sucessivas mudanças nos desarticularam das escolas – nem sempre estávamos em cidades grandes – e fiz o primário com professores particulares. Era uma tentativa de suprir a deficiência da falta da escola. Mesmo estudando com meninos de diversos níveis, cada um trabalhava no seu, em suas dificuldades particulares.
- Em sua casa, contavam-se histórias?
Engraçado, não me lembro de me contarem histórias. Mas deviam fazê-lo. Certamente, minha mãe me contava contos de fadas. Mas como fui alfabetizada muito cedo, logo comecei a ler por conta própria.
Acredito que meus 6, 7 anos foram a idade de maior fascínio para a leitura. Quando morávamos em Roma, ganhamos uma coleção chamada “Scala d’Oro”, que em português seria “Escada de Ouro”. Eram adaptações de clássicos para crianças de 12 anos em diante. Tinha “D. Quixote”, “A Ilíada”, “A Odisséia”, “Orlando Furioso”, mitologia grega. Uma paixão! Nunca mais reli “D. Quixote”, pois fico com medo de não gostar. Essa coleção marcou muito a mim e a meu irmão.
Um autor que eu adorava era Emilio Salgari, que escreveu loucamente, pois estava atado a contratos leoninos com as editoras da época. Sem nunca ter saído de sua cidade, ele produziu séries de aventuras com temas de piratas, índios americanos, caçadores de peles, o Oriente, a Indochina, lutas contra os ingleses. Essas histórias, para nós, eram tão fortes que tínhamos uma tribo de índios, onde meu irmão era o chefe e eu, Sole Ridente (sol ridente). Brincávamos muito. Quando estive nos Estados Unidos, visitei os lugares sobre os quais líamos quando crianças. Para nós, o Oriente era para brincadeiras.
Vim para o Brasil com 11 anos. Superamos a mudança de língua com facilidade. Aprendemos de duas formas. Um primo de meu pai estava aguardando ser operado nos Estados Unidos. Então, ficávamos, eu e meu primo, deitados com ele na cama para lhe fazer companhia. Enquanto isso, ele lia histórias em quadrinhos em italiano e as traduzia para nós; isso facilitou muito nosso contato com a língua. Depois fomos para a escola, já com certo conhecimento do português.
Lemos poucas histórias em quadrinhos. Muito mais contos de fada porque minha mãe gostava. Ah! “Pinocchio”, claro, sou uma menina italiana. Mas não li “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll.
Morávamos no parque Lage com minha tia, Gabriela Besanzoni Lage. Em sua casa todos falavam italiano, inclusive os empregados. Nessa época, as histórias de minha tia não me marcaram, só foram realmente me fascinar quando adulta. Em seguida, fomos para a escola.
- Que influências você sofreu na escola e depois?
Estudei na seção brasileira do Liceu Francês (hoje, Franco-brasileiro). Depois, fui para o Santa Marcelina, retornei ao Franco-brasileiro e completei o Clássico no Mello e Souza, em Copacabana. Para mim foi uma decepção. Eu tinha uma prima que acabara de cursar o Clássico na Itália, onde era valorizado o ensino do grego, do latim, da literatura. Aqui nada disso era transmitido. Estudei Álvares de Azevedo, mas senti que não gostava: “O Cortiço” é um livro muito bonito, mas não era uma emoção. Não li Machado de Assis na escola, só depois. Para se ter uma idéia, jamais fui apresentada a “Os Lusíadas. Nunca frequentei nem aprendi a estudar em bibliotecas. Acho que no meu tempo as crianças não faziam, como hoje, pesquisas do tipo: “quantos metros tem o pescoço da girafa?”
Porém, uma vez, uma professora disse que o MEC estava dando, de graça, umas edições de poesia. Eram uns livrinhos brancos, com uma ânfora na casa. Lá fui eu encontrar-me com Manoel Bandeira. Uma paixão arrebatadora. Mais tarde, vi jogado no chão de minha casa um livro sujo, de capa muito feia, vermelha com letras pretas: era Drummond. Na poesia brasileira, o que mais me marcou foram os dois.
No Brasil todo mundo gosta de Monteiro Lobato porque ele representa uma abertura, como aquela coleção foi feita para mim. Mas quando o li, já era adulta, profissional, e não gostei. Aliás não gosto desse transporte, da adaptação de histórias com personagens de outras. Talvez por eu ter lido mitologia, contos de fadas verdadeiros… Também não gosto de histórias que tem bichos que falam.