Matéria publicada no jornal A Tarde no caderno 2 do dia 28 de novembro de 2009, na capa do caderno e nas páginas 4 e 5.
Revisitando Alice
Clássico Cosac Naify uniu a genialidade da obra de Lewis Carroll à ousadia do artista multimídia Luiz Pierre Zerbini.
Cássia Candra
“De que serve um livro sem figuras nem diálogos?” O primeiro questionamento de Alice, protagonista do clássico de Lewis Carroll, “Alice no País das Maravilhas”, é levado a série na nova edição da obra no Brasil, que a editora Cosac Naify coloca hoje nas livrarias do País em duas versões.
Em forma de pop ups, as ilustrações teatrais criadas pelo artista multimídia Luiz Zerbini quase saltam das páginas do livro, acrescentando mais ludicidade à abundância visual da história que há quase 150 anos arrebata leitores de todas as idades.
Construídas com cartas de baralho para interpretar, em jogos de luz e sombra, o universo imagético de uma menina em sua aventura non sense, as maquetes do artista paulistano são “um deslumbramento para os olhos”, na opinião da doutora em lingüística e semiologia, Ana Maria Machado, que assina um dos textos da nova edição.
“A identificação foi total”, diz Zervini, em entrevista ao Caderno 2+. O artista que chegou a pensar em declinar do convite da editora, resolveu que melhor seria responder uma ousadia com outra ainda maior, e até cogita “fazer uma exposição só sobre Alice”, a partir de uma “interpretação livre da história e seus desdobramentos”.
Para o historiador Nicolau Sevcenko, que fez a tradução integral do original de 1865, Zerbini se saiu bem com sua “poesia visual”, delicada, onírica e “estranhamente desconcertante”. Também enredado nos instigantes jogos de Carroll (em seu caso, gramaticais e semânticos), o tradutor considera que em uma história com tamanha força visual, ilustrações e ilustradores são elementos “decisivos do livro”.
Desde o inglês John Tenniel, que ilustrou a primeira edição muitos artistas já interpretaram plasticamente a história. O mais famoso foi o surrealista Salvador Dali, em 1966. a nova versão do clássico já revertido para o teatro, a dança, a música e as HQs, chega às vésperas de mais uma superprodução para o cinema, desta vez desafiando o diretor Tim Burton.
Clássico “Alice no País das Maravilhas”, é considerada uma obra provocante, rica em referências e signos.
História instiga estudiosos e criadores de várias linguagens
Cássia Candra
Citando Santo Agostinho em “O prazer do texto” (perspectiva, 2002), uma de suas obras mais conhecidas, o semiólogo francês Roland Barthes, afirma que o signo é “uma coisa que, além da espécie ingerida pelos sentidos, faz vir ao pensamento, por si mesma, qualquer outra coisa”.
Este era o deleite de Lewis Carroll (1832 – 1898), nascido Charles Lutwidge Dodgson, que em sua obra-prima “Alice no País das Maravilhas”, dialoga eloquentemente com seus leitores, articulando signos verbais, sensoriais e plásticos.
“É através do uso da linguagem verbal que Carroll retrata seu imaginário excepcional, evocando uma confluência entre palavras, sentidos e o imaginário do leitor”, pontua Fernanda Donato, em sua dissertação de mestrado em Ciência da Arte pela Universidade Federal Fluminense, “Alice no Universo da Percepção Visual: uma leitura semiológica de Alice in Wonderland de Lewis Carroll”. Fernanda, que atualmente é professora da Universidade Estácio de Sá, no Rio de Janeiro, afirma, em sua pesquisa, que o escritor inglês se serve das palavras como peças de quebra-cabeça. Para ela, Carroll, que era professor de matemática na Universidade de Oxford, fazia da literatura “um meio de entretenimento associada ao livre prazer de construção e desconstrução de ideias e imagens oriundas de seu imaginário fértil”.
Quem mais poderia criar uma situação na qual uma menina cresce tanto que não consegue ver mais os próprios pés e até planeja enviar-lhes um par de botas de presente pelo correio? “Estranhissérrimo”, diria a protagonista da imaginação deslumbrante de Carroll.
Jogos gramaticais
Absolutamente fascinado, o historiador Nicolau Sevcenko, aceitou a provocação ao traduzir a obra original de 1865, além de todos os poemas do autor, para a mais recente edição brasileira, que a editora Cosac Naify lança hoje em todo o País.
Professor da USP e da Universidade de Harvard (EUA), a ele coube resolver a equação literária de Lewis Carroll. “Encarar os jogos gramaticais, semânticos, contextuais, poéticos, filosóficos, estéticos e éticos das poesias e canções do livro foi um desafio enorme”, reconhece.
“As maravilhas do mundo de Alice acontecem por meio da linguagem”, enfatiza a professora Fernanda Donato em sua pesquisa sobre o clássico, sublinhando os recursos inesgotáveis que o autor apresenta, conscientemente. Ela questiona se Carroll – fotógrafo, matemático e pensador de lógica -, “seria capaz de estabelecer um limite para a sua escrita, não permitindo que extrapolasse para os demais campos de seu domínio?”
Carroll dialoga eloquentemente com seus leitores, articulando signos verbais, sensoriais e plásticos.
Outras linguagens
O artista visual Victor Venas pensa que o valor da obra de Carroll, como representação artística de uma época, se dimensiona no momento em que estabelece uma possibilidade de diálogo com outras linguagens.
“Alice no País das Maravilhas” “é um marco. Várias obras usam, direta ou indiretamente suas referências”, observa. Ele cita “A Viagem de Chihiro”, de Hayao Miyazaki, Oscar de melhor animação em 2003, e “Matrix”. Na ficção de Andy Wachowski e Larry Wachowski, há uma referência direta, quando Morpheus pergunta ao protagonista, Thomas Anderson (Keanu Reeves): “Está se sentindo como Alice, não?”
Andréa Elia, que montou e dirige o espetáculo infantil “Alice no Sertão das Maravilhas”, em cartaz até amanhã, no Teatro Módulo, diz com propriedade que “a obra de Carroll é inspiração para outras abordagens artísticas”. Para ela, “esta certamente é uma história que poder ser encenada, musicada, dançada…”.
Além do que, se trata de uma “viagem psicodélica com abertura para muitas adaptações”, comenta. Ela mesma transpôs o universo da Inglaterra Vitoriana para uma realidade mais próxima do público baiano. Assim, em sua adaptação para o teatro infantil, a Rainha de Copas virou cangaceira, e o gato e o coelho se transformaram em um bode e em um tatu. “A nossa Alice percorre este cenário, e com ela mantivemos nosso encantamento”, conta a diretora.
Para Venas, que também é arte educador, as sessões semanais do desenho animado de Walt Disney o levam a redescobrir os enigmas da mensagem contundente do clássico, que ele usa como referência em sala de aula. “Alice vive um rito de passagem, ela se transforma. É como se dissesse: ‘Questione’. É um livro que não tem idade. É pura filosofia”, conclui.
O tradutor Nicolau Sevcenko reconhece o desafio enorme que foi resolver a equação literária de Lewis Carroll
Curiosidades
Tradução Monteiro Lobato, autor da coleção “Sítio do Pica-Pau Amarelo”, foi responsável pela tradução da edição brasileira publicada em 1960.
Cinema A obra vem sendo adaptada desde 1903, época do cinema mudo, o próximo lançamento tem a direção de Tim Burton.
Artes Dentre os muitos artistas que já interpretaram plasticamente a história de “Alice no País das Maravilhas”, o mais famoso foi o surrealista Salvador Dali, em 1966 e que não tem publicação no Brasil.
Entrevista
Luiz Zerbini, artista multimídia
Acho que meus desenhos só servem para minhas histórias
Luiz Pierre Zerbini, 50 anos, é o que se pode chamar de um sujeito dinâmico. Concedeu a entrevista por e-mail, da ponte aérea, entre o Rio de Janeiro, sua morada desde 1980, e São Paulo, cidade natal, onde monta atualmente uma nova exposição. Há inúmeras outras em sua trajetória, iniciado aos quatro anos de idade com aulas de pintura (depois estudou fotografia e aquarela). Já passou por vários salões e bienais importantes, como as de São Paulo e Havana e participou de outros projetos interessantes, como o grupo de teatro Asdrúbal Trouxe o Trombone, junto com a atriz Regina Case, fazendo cenografia.
Artista multimídia e um grande experimentalista, Zerbini é o criador do grupo Chelpa Ferro, que associa imagem e som, redefinindo significados para antigos equipamentos eletrônicos. O convite de Cosac Naify, para ilustrar a nova edição brasileira do clássico “Alice no País das Maravilhas”, de Lewis Carroll, o levou a uma experiência única, por meio da qual experimentou uma interpretação plástica sem precedentes em sua carreira. É sobre isso que ele fala nesta entrevista à repórter Cássia Candra.
Você já havia pensado em ilustrar a obra?
Nunca. Sempre achei que o texto continha uma quantidade de informação, detalhes, cenários e personagens que seria impossível e desnecessário ilustrá-lo. Não dá pra competir com a profusão de imagens contidas numa única frase do livro. Ilustrações imaginárias são mais ágeis e sujeitas às metamorfoses que o livro passa. Elas parecem mais compatíveis com a idéia do autor, mas esse não era o desejo da Alice e temos que respeitar o desejo dela.
Sempre achei que o texto continha uma quantidade de informação que seria impossível ilustrá-lo.
Como surgiu o convite?
Eu imagino que a editora deve ter pensado “só um maluco aceitara um trabalho como esse”, logo pensaram em mim. Mesmo assim, meu primeiro impulso foi o de recusar o convite. Por outro lado, sempre senti uma atração pela Rainha de Copas e seu exército de cartas. Foi por onde eu comecei imaginando que poderia construir personagens de carta de baralho. Pensei também numa frase de Alice no começo do livro, em que ela diz como pode existir um livro sem ilustrações e imaginei que hoje em dia ela diria como pode existir um livro com ilustrações ilustrativas e isso me fez pensar no livro sem ilustrações literais. Pensei em ilustrações que contassem uma história paralela.
Qual o significado do projeto?
Acho que fiz um dos meus melhores trabalhos. Não sou um ilustrador e nunca havia ilustrado nenhum livro antes. Acho que meus desenhos só servem para ilustrar minhas próprias histórias. Talvez, por isso, tenha escolhido construir um país das maravilhas com cartas de baralho.
Imagino que a editora deve ter pensando “só um maluco aceitaria um trabalho como esse”
O que o levou a interpretação desse elemento?
Quando acabei de fazer o exército de cartas e a Rainha de Copas, vi que poderia construir tudo a partir de cartas. Precisava de alguma coisa que desse unidade visual.
Nicolau Sevcenko disse que seu trabalho está à altura da energia alucinante do livro…
Me sinto naturalmente imerso em uma energia alucinatória. Tenho muita facilidade em falar com insetos, plantas e objetos em geral, isso facilitou. A identificação foi total.
Adaptação de Tim Burton no cinema nacional só em Abril de 2010
Lucas Cunha
Os fãs brasileiros de Alice serão um dos últimos países a receber a aguardada versão dirigida por Tim Burton que chega no início de março de 2010 à maioria dos mercados, mas só aporta nos cinemas do Brasil em 23 de abril.
A razão das expectativas vem da possibilidade da junção de dois autores consagrados justamente por construírem obras supostamente para um público infanto-juvenil cheias de mensagem subliminares e estilo nonsense.
Apesar de Alice já ter sido adaptado para o cinema algumas vezes, a mais notória delas para a Disney em 1951, a versão de Tim Burton tem tudo para ser a versão mais marcante, o que já pode ser conferido pelo trailer que está na internet.
Segundo o diretor, o livro de Lewis Carroll sempre lhe fascinou, não apenas pela história, mas por trazer muita informação e músicas. Completa ainda que “nenhuma versão filmada até agora tinha um apelo para mim”, o que deve resultar em algo único.
Para criar uma história diferente, Burton diz ter pego trechos dos livros de Carroll para montar a sua versão, sem se preocupar em seguir fielmente algum livro ou ainda de partir de algum lugar que ainda não tenha sido abordados em outras versões. Burton disse em uma entrevista no Comic Som, este ano, que se baseia em uma “viagem interna”.
“Estes personagens representam as coisas dentro da psique humana. Eu acho que toda criança tem seus problemas, assim como os adultos têm. Alguns tentam terapia, outros vão fazer filmes, existem diferentes maneiras de tentar superar seus problemas”.
Visualmente, as primeiras imagens divulgadas do filme de Burton também impressionam. Outra expectativa é pelo 3D nessa versão, o que ainda deve resultar em uma experiência ainda mais psicodélica. “Hoje temos muitas técnicas diferentes de se fazer um filme e eu queria misturá-las para fazer algo novo. O 3D mudou muito”.
Alice traz no elenco o eterno companheiro de Burton, Johnny Depp, como o chapeleiro maluco. Alice será feita pela pouco conhecida atriz Mia Wasikowska. Alice Hathaway também participa como a Rainha Vermelha.